Creepypasta - Obscura Obsessão

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Creepypasta- Obscura Obsessão

Por: Lívia Tinoco

“Just as innocent as roses in may, and it’s pure white just like sin.”
- Kan Hashimoto

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Eu nutria estranha e angustiante obsessão pelo jardim. Todas as tardes, por mais que o cansaço e a exaustão fossem sufocantes, era francamente impossível permanecer caminhando com pressa, pois a beleza magnânima daquele jardim atraía e petrificava qualquer transeunte. Encarava extasiada as flores voluptuosas abrigadas atrás das grades de um portão colossal que as guardavam como gigantes guerreiros divinais empunhando lanças prateadas.

Nesse pequeno Éden terreno, eram as rosas o tesouro que real e irreversivelmente me hipnotizava. Possuíam um vermelho jamais antes visto por olhos mortais, surgidas de volumosas roseiras de caules praticamente inquebráveis. Sabia que eram praticamente inquebráveis pois, por vezes, havia meninas brincando em meio à planta – duas – e nessas ocasiões observei-as cortando sofregamente o talo das flores com uma pequena tesoura de jardim.

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Vi suas mãos infantis apertando sofregamente o instrumento de topiaria enquanto seus rostinhos refletiam o esforço necessário para completar a ação. Ainda nesta quarta-feira, caso meu cérebro mortificadamente horrorizado não esteja afetando minhas lembranças, estava eu voltando do trabalho, simples, como balconista numa perfumaria das redondezas; andava, como sempre, pelas calçadas, tomando cuidado para não torcer meu pé devido ao salto e às numerosas rachaduras que escarravam grande quantidade de musgo no concreto úmido. Deti-me, por motivos inexplicáveis que mencionei anteriormente, em frente à casa onde o jardim estava alocado.

As meninas estavam em meu tão almejado “mar de rosas”. Juntei meus pés e braços junto ao corpo, com as mãos cruzadas em sua frente, a posição de um animal de curiosidade sincera. Vi-as rindo e dançando: seus pés sujos de barro, como se estivessem calçando meias marrons avermelhadas, deixavam marcas na lama conforme saltitavam em sua dança.

Esse ritual parou abruptamente no instante em que uma das crianças notou minha presença. Ela estacou seu passo no ato e correu até a outra para cochichar nos cabelos que cobriam-lhe a orelha a descoberta da estranha espectadora. Ambas olharam-me com espanto incômodo, trocando palavras que não pude ouvir, e correram para dentro da casa.

Permaneci imóvel, cativando cada detalhe da casa vitoriana e seu jardim magnífico. A construção contava com uma pequena escadaria rústica que levava à porta principal, e o teto da varanda do térreo funcionava como sacada para o primeiro andar. Forcei a vista para enxergar a pequena janela do sótão, o ponto mais próximo do céu róseo de fim de tarde.

O sol parecia tentar esconder-se atrás do prédio, emanando uma aura alaranjada ao seu redor, dando a ilusão dele ser a fonte do calor do dia quente e úmido. Tudo era muito bonito: cada flor cultivada, cada aspecto da casa. Tudo muito perfeito. No momento em que sorvi todo pedaço da face angelical do jardim, o sentimento de admiração, fonte de minha obsessão, foi substituído pelo medo, frio e puro, mas que suscitava igual obsessão. Medo do que a perfeição ocultava, pavor do recôndito obscuro que sentia adormecido sob o encanto do lugar.

Tais sensações foram brutalmente dissipadas quando uma movimentação atrás da cortina do sótão fez-me direcionar novamente o olhar nos degraus. Abriram a porta e saíram as meninas. Traziam consigo a tesoura, creio que a buscaram no sótão. Uma delas sentou-se lá mesmo, logo abaixo do alpendre, atenta, enquanto a outra andava com a visão fixa na roseira.

Decepou uma flor e caminhou mansamente em minha direção. Fui domada pelo vermelho das pétalas, vi-me aproximando do portão e envolvendo os dedos no metal frio, reparei que ele estava encoberto por uma camada de ferrugem, indício frugal da fraudalidade do primor aparente.

A pequena estendeu, sem desviar em momento algum seus olhos dos meus, pois parecia ansiar congelar minha alma com seu olhar, a oferenda em suas mãos danificadas por cortes e arranhões modestos que vertiam finos traços de sangue. No intuito de receber o presente, trespassei a mão pelo portão, alcançando a dela e quase tocando-a.

Minha pequena ambição agora estava sob minha posse. Estranhamente exalava um perturbador odor metálico, que provavelmente provinha da ferrugem do portão que teria alastrado-se por meus dedos. Assim sendo, retirei-me o mais imediatamente possível, com completa despreocupação e esquecimento do musgo e das rachaduras, chegando em casa com o tornozelo ileso por franca e fútil sorte.

Passei o resto do dia e da noite absorvendo minuciosamente todo pormenor do prêmio que conquistei no dia. Fascinada com os espinhos, com as pétalas, com as folhas, com o modo como o centro da rosa tentava abduzir-me para um universo completamente dela. Inconvertivelmente apaixonada, eu acariciava suas pétalas. Todavia, elas deixavam uma bizarra cor vermelha nas pontas dos meus dedos. Achei aquilo extremadamente esquisito, era como se sua cor, razão de minha descomunal monomania fosse mero disfarce; uma farsa! isca descarada!

Tomada por inquietação enérgica, esfreguei os dedos uns nos outros, investigando a “maquiagem” do objeto outrora puritano perante meus olhos. Realmente, quanto mais atrito, mais borrados e avermelhados tornavam-se os dedos. Mais perto... o estapafúrdio cheiro metálico parecia prover dessa coloração. Tomei mais uma vez a rosa nas mãos, comparando suas pétalas lado a lado com os dedos. A veracidade de meu assombro era tão sincera que extirpei e examinei, uma por uma, pétalas vermelhas fajutas.

No outro dia, como praxe, estava parada diante do jardim. Dessa vez criança nenhuma brincava nas roseiras. Eram apenas eu e o maquiavélico exército fariseu de flores. Segurava firme dois livros em mãos e nem me dei conta de que os amassava, sentia apenas o ódio mórbido que já fora paixão. Mas, pensando bem, este ódio não deixava de carregar certa paixão. “Posso ajudá-la, senhorita?”. Dei um pulo, com o coração quase saindo-me pela boca, quando esse sussurro penetrou meus pensamentos.

Ao voltar-me em sua direção me deparei com o velho, perfeitamente ao meu lado, mas d’outro lado do portão. Estava certa quando disse que suas grades eram as lanças de guerreiros celestiais, mas neste momento o que estava sendo protegido era eu. Já havia visto o velho antes: raras ocasiões. Ele aparecia depois de chuvas e cuidava das rosas, mancando entre as poças que refletiam um vermelho tão intenso que como se possuíssem cor própria.

Ele ocupava grande parte do tempo em uma pequena construção do jardim, semelhante a um depósito, provavelmente construído para guardar ferramentas de jardinagem, o que estranhei, já que as meninas pegaram a tesoura no sótão. Eram nesses dias chuvosos que eu presenciava pequenos ataques de cólera e via-o cortando algumas das flores. Apertei ainda mais forte os livros, minhas mãos suavam, umedecendo o papel. “As meninas parecem muito interessadas em ti...”.

Ele estava apoiado numa pá enorme. Um de seus olhos era morto, catarata talvez, e o outro, que nunca desviava-se de mim, era maligno e um tanto reptiliano. Percebi que na verdade ele não estava sussurrando, que sua voz era rouca e fraca. “Quem és tu?”,perguntei, e o velho respondeu com um sorriso de dentes podres. A serpente do medo me sufocava. Virei-me e fugi. Fugi, mas a serpente não me deixou, uma vez que sua peçonha já estava correndo pelas minhas veias.

Desta vez não foi o fascínio pela rosa que me impediu de possuir uma proveitosa noite de sono, foram os pesadelos impiedosos e pavorosos que me assombraram ao longo da noite. Visões com cobras, meninas, rosas e pás. Novamente sendo atormentada pelo que quer que esteja sendo encoberto pelo esplendor das flores.

Eu adoeci, impossibilitada de pensar em qualquer coisa além das rosas. Decidi estoicamente que entraria no jardim. Como? Quando? Era tarde demais para pensar em tais questões, pois eu já havia posto-me a caminhar abaixo do luar em direção ao recinto primaveril quando elas me vieram à mente. Tinha a leve consciência de estar trajando uma camisola pela qual a brisa noturna alcançava minha pele e enrijecia os finos pelos de meus braços e costas.

Enlacei os braços ao meu redor. Nunca antes caminhara por esses lados tão tarde da noite, senti-me vigiada e caçada, tanto pelas estrelas e mariposas quanto por animais sanguinários e selvagens, mesmo sabendo que eram ausentes na cidade. Quando senti uma onda gélida e dolorosa, resultado de um passo errôneo sobre um caco de vidro, subindo pelo meu ser percebi também que estava descalço, em contato direto com o musgo macio e que pisara nos frangalhos de uma garrafa estraçalhada.

Fiquei de fronte ao paraíso, como milhões de vezes anteriores. Ao mesmo tempo em que estava amedrontada, uma excitação ádvena me corrompia. As flores pareciam sussurrar para que eu me aproximasse, para que me entregasse a elas, para me tocarem, acariciarem e cometerem os mais atrozes atos. Desandei a procurar uma forma de entrar.

Pelo portão era impossível, então rodei o muro em busca de alguma brecha. Estanquei quando vi, entre arbustos mal cuidados, olhos brilhantes me fitando. Um gato negro saltou para fora das folhas. O bicho emitiu um miado dissonante e estridente, como arranhões em uma lousa negra.
Resolvi segui-lo. Quando ele entrou em outros arbustos, me agachei e fui a seu enlace, me orientando pelo som de suas patas nas folhas secas que revestiam o solo, misturado com o canto dos grilos.

Adentrei uma cerca viva, sofrendo leves arranhões por todo o corpo, com meu cabelo semelhante a um ninho. O gato miou novamente, logo à frente. Forcei meu corpo um pouco mais, saindo diretamente ao lado das rosas. Assim que saí das folhas o cheiro inconfundível e abrasador das rosas atingiu-me. Não era bom, de forma nenhuma era bom. Era o cheiro metálico e acrimonioso que sentira noite passada e ainda perdurava em meus dedos.

Uma ventania medíocre afagava as flores, dando-lhes característica espectral. Logo atrás das roseiras era possível ver a Lua brilhando, a majestade da noite, mas ela estava perdendo a batalha contra as rosas pelo seu reinado.

Levei um choque quando o gato gritou pela terceira vez. Ele estava perto do pequeno depósito. Decidi entrar no lugar, que parecia o coração do jardim. A porta de madeira estava destrancada: abri. O odor lá dentro era inúmeras vezes mais forte que no jardim, então imaginei que fosse aqui onde as rosas eram guardadas e recobriam as prateleiras. Mas uma conclusão cortou meu raciocínio: era cheiro de sangue.

Procurei um interruptor com mãos trêmulas e ativei a lâmpada. Meu olhos levaram 5 ou 6 segundos para acostumarem-se com a iluminação súbita e então olhei ao redor. Era confuso... roupas, sapatos, mãos, pernas esparramadas pelo chão. Em três paredes do cubículo estavam recostadas mesas e, sobre elas, cabeças. Cabeças decepadas de moças jovens, decepadas como rosas de uma roseira. Era possível ver a traqueia e o pedaço da coluna onde era ligada ao crânio.

Os rostos estavam pasmados numa eterna expressão de horror, com olhos saltados onde moscas enormes pousavam e botavam seus ovos, donde as larvas caíam e brotavam. Dentro das bocas besouros passeavam alegremente como se contentes por possuírem um farto banquete.

Um corpo estava pendurado pelos tornozelos ao teto. Do toco onde deveria encontrar-se a cabeça gotas de sangue pingavam num balde de alumínio, podiam-se ver alguns pincéis manchados de sangue espalhados pelo chão ao lado e algumas rosas simples, comuns como a de qualquer outra casa do mundo, molhadas e jogadas num canto do antro.

Vendo tudo isso, o mundo iniciou um insano frenesi de voltas. Levantei do chão, já que havia caído de joelhos devido à surpresa e ao horror, e corri. Corri o mais veloz que pude para qualquer lugar longe daquele, corri com tamanho ardor que a última coisa que me lembro de ver é o gato sentado em cima do depósito, seguindo com o olhar minha célere fuga.